Biografias Ngal-So: Paulo Busse

Encontrei o budismo tibetano quando tinha uns 25 anos de idade. Me senti atraído pela filosofia budista ao ler o livro-entrevista com o Joseph Campbell, O Poder do Mito. Na mesma época, tive uma experiência com ayahuasca que me abriu uma porta espiritual que nunca mais se fecharia. Essas duas experiências me lançaram à procura de um centro de Dharma em São Paulo. Na época, não existia internet e a busca não foi fácil. Não me lembro como, mas em pouco tempo encontrei o nosso Centro de Dharma da Paz, onde fui muito bem recebido pela querida Bel Cesar, e passei a frequentá-lo.

No início, para mim o budismo foi um choque em vários aspectos: cultural, intelectual, psicológico etc. Ao mesmo tempo em que me identificava com tudo o que via, ouvia e sentia quando ia ao centro, ou lia nos livros e textos que conseguia, o fato é que os ensinamentos, práticas e a cultura do budismo e do Tibet iam de encontro com tudo o que tinha visto e vivido até então: no ambiente familiar, nas escolas e faculdade, nos ambientes de trabalho, nas rodas de amigos, nos relacionamentos. Por outro lado, num plano mais essencial, a sabedoria budista combinava com tudo o que pensava e intuía sobre a vida e seu sentido mais profundo, e era isso que me atraía.

No início, abordava os ensinamentos com uma postura crítica e defensiva, e questionava bastante tudo o que lia e ouvia. Muitas vezes enchia de perguntas quem estivesse à minha frente transmitindo ensinamentos. Com o tempo, porém, a cada nova série de perguntas e respostas, ia percebendo que minhas críticas, oposições e resistências diminuíam e enfraqueciam. Bem aos poucos, no começo até sem perceber, ia me abrindo para o budismo mais profundo. Nessa época, o convívio com a Sangha foi fundamental para meu desenvolvimento. No Centro de Dharma, me sentia acolhido por quem eu era de verdade, não precisava fazer média, fingir ser outra pessoa ou usar alguma máscara, o que, estranhamente, não parecia acontecer em nenhum outro lugar. Pessoas como a Bel e a Pê foram fundamentais nesses meus primeiros anos, porque me ajudaram a dar os primeiros passos no budismo, e a compreender aspectos mais difíceis dos ensinamentos, conceitos e práticas, diferenças entre escolas e abordagens, mestres e linhagens.

Nessa época, conheci e recebi ensinamentos diretos de dois grandes mestres: Dalai Lama e Chagdud Tulku Rinpoche. Pela primeira vez, me encantava profundamente com a presença e proximidade física de verdadeiros mestres. Mais que a qualidade, clareza, precisão e profundidade dos ensinamentos que transmitiam, era a energia que emanavam com sua mera presença o que mais me impressionava. Nessa mesma época, também tive a chance de conhecer e receber ensinamentos preciosos de Lama Tsering, que me ajudaram muito a compreender melhor o que hoje chamo de budismo para adultos, em que assumimos de frente a responsabilidade por nossa prática e desenvolvimento espiritual, sem nos vitimizar ou nos infantilizar diante dos mestres.

Por vários anos, minha relação com o Dharma foi muito mais racional e intelectual do que mística, embora desde o início já pudesse sentir e intuir a grande energia além das palavras que o budismo tântrico acessava e oferecia. Nos primeiros anos, minha vida no Dharma era mais ler e ouvir ensinamentos que propriamente meditar. Frequentava o Centro de Dharma mais em busca de sabedoria em forma de aulas, textos, livros. Experimentava algumas práticas de meditação, mas sempre no contexto de aulas e workshops entremeados de ensinamentos. No início, achava dificílimo diminuir o ritmo e me concentrar. Em casa, tateava a prática de simplesmente parar e prestar atenção no corpo e na respiração. Por um bom tempo, não achava postura confortável ao me sentar no chão em almofadas, na posição de lótus. O corpo se sentia estranho, a mente se sentia estranha. Não controlava a respiração, e a mente realmente viajava, fazia o que queria. Hoje vejo como era escravo absoluto dos meus pensamentos e emoções, e era facilmente capturado e levado por eles. Ainda sou assim, mas um pouco menos.

Passei um bom tempo apenas lendo textos e livros sobre budismo. Lia e relia tudo o que caía em minhas mãos. Analisava os ensinamentos por todos os ângulos, várias e várias vezes. Até hoje, revisito alguns textos para mim mais essenciais. No início, tudo o que absorvia era, ao mesmo tempo, um enorme sopro de ar fresco e também um desafio. Aos poucos, percebia que a forma como tinha vivido até então entrava em crise. Cada vez mais isso ia ficando claro e, ainda assim, resistia às mudanças que se insinuavam de forma irresistível pela presença do budismo em minha vida. Por outro lado, ainda tinha um apego enorme a meu mundo velho conhecido (o que chamo hoje de meu primeiro ego), a forma como me via e vivia, meus amigos e familiares, minha mulher e minha filha, minha prática profissional, as coisas que gostava e de algum modo me definiam, enfim, todo meu contexto pessoal, familiar, social, profissional. Ao mesmo tempo em que todo o meu mundo pessoal entrava em crise, eu ainda me negava a aceitar e me abrir para as mudanças que me caberiam se quisesse realmente progredir no caminho do Dharma.

Um dia, ainda nos primeiros anos e pouco depois de meus encontros com o Dalai Lama, o Chagdud e a Lama Tsering, conheci Lama Gangchen Rinpoche. No Centro de Dharma aqui em São Paulo, finalmente me encontrava com aquele de quem tanto tinha ouvido falar em textos, ensinamentos, histórias e comentários. Logo no primeiro encontro, talvez tenha tido uma das minhas primeiras experiências verdadeiramente místicas, diretas e mais profundas com o budismo. Pela primeira vez, senti como se uma porta enorme de conhecimento direto não conceitual se abrisse pela mera presença do grande mestre, e uma quantidade enorme de sabedoria em estado bruto entrasse de forma direta e profunda no meu coração. Pela primeira vez, percebia, de forma não intelectual, o que era de fato o budismo tibetano. A importância do mestre e sua presença, a conexão direta mestre-discípulo, a proximidade e convivência como práticas fundamentais, e a abertura e confiança que devemos nutrir e aprofundar. Com o Rinpoche, tudo isso aconteceu de forma absolutamente simples e natural, mágica até. Aquela porta que se abriu logo no primeiro encontro nunca mais se fecharia. Sentia tudo aquilo de forma absolutamente clara, direta. Meio sem perceber, o adotava como meu primeiro mestre e, sinto, ele me aceitava como discípulo. Não havia dúvidas de que estava na presença de um grande mestre, um ser realmente iluminado, um verdadeiro Buda. E assim me rendia definitivamente à necessidade vital de me aprofundar no budismo, e escolhia o caminho proposto pela linhagem de Lama Gangchen.

No início sem perceber, começava então a abrir mão de uma série de coisas, hábitos, pessoas e lugares em prol desse aprofundamento. Minha filha de 12 anos ainda hoje me pergunta: pai, como sabe que ele é um Buda? E lhe respondo: simplesmente sei, filha. Desde então e até hoje, nunca houve sequer esta necessidade de me justificar ou de explicar ao mundo ou a mim mesmo o que sentia e intuía, porque é uma experiência que vai muito além do racional e transcende qualquer discurso, uma experiência interna e mais direta, clara, profunda e essencial da realidade. Hoje, depois de vários anos, fico muito feliz em constatar que essa relação mestre-discípulo com o Rinpoche nunca foi abalada, e só se fortalece.

Outro momento importante na minha história no budismo foi minha primeira viagem a Borobudur, em 2013. Novamente, tudo mudava na minha relação com o Dharma. Logo ao chegar a Borobudur, tive dois insights poderosos: (i) minha prática budista não deveria ser só pra mim, para resolver meus problemas pessoais, mas deveria envolver todos os seres a meu redor, deveria beneficiá-los também; e (ii) se quisesse continuar a me aprofundar no caminho espiritual deveria incorporar o hábito de meditar diariamente, em prol de todos os seres, e a fazer desse hábito um compromisso inabalável comigo mesmo.

Para quem nunca foi a Borobudur, importante dizer que lá é um lugar permeado por uma energia realmente única e indescritível, que, se estivermos abertos, naturalmente nos desperta uma série de insights e nos induz a um grande aprofundamento. Pouco depois, também fui ao Nepal com Lama Gangchen, outro lugar de uma intensidade espiritual impressionante. Essas experiências me mostraram a importância das viagens no caminho de abertura, aprofundamento e desenvolvimento espiritual, o que é sempre enfatizado pelo próprio Rinpoche.

Sobre a necessidade de ter constância na meditação, até minha primeira viagem a Borobudur já havia experimentado várias vezes a prática de autocura, e ela sempre me fazia bem. Mas até então, por alguma razão, nunca tinha conseguido manter o hábito de repeti-la diariamente, ou com alguma regularidade. Quando dava vontade ou sentia necessidade, sentava e fazia, e me sentia bem. Mas depois de Borobudur, logo que cheguei a São Paulo passei a fazer a prática de autocura todos os dias. A partir de então, comecei a perceber mudanças lentas, sutis e graduais, mas muito reais e consistentes em minha vida, minha forma de ser, estar e me relacionar no mundo. As mudanças que observo em mim são constantes mas não lineares, porque nesse processo vejo claramente avanços e recuos, altos e baixos, conquistas e recaídas. Mas num plano maior percebo nitidamente o meu progresso. A cada dia que passa, vejo-me diferente e para melhor. Sinto o fortalecimento da minha conexão com o Dharma e os mestres, um gradual amansamento do meu ser, uma gradual abertura do coração aos outros seres e ao mundo ao redor. Para mim o caminho não tem sido nada fácil, porque o tantra nos induz a acessar camadas muito profundas e difíceis de nós mesmos, o que às vezes pode ser bem penoso. Mas as conquistas que ele proporciona valem todo e qualquer esforço e sacrifício. É, de fato, um caminho sem volta de evolução.

A essa altura, já conhecia e me aproximava de outros dois grandes mestres da linhagem, Lama Michel Rinpoche e Lama Caroline, e também os adotava como mestres pessoais. Os ensinamentos, bênçãos e sabedoria transmitidos em português direto do tibetano por Lama Michel são de uma preciosidade além das palavras, e de importância fundamental na minha formação e desenvolvimento na vida espiritual. Aumentam enormemente minha compreensão sobre o budismo mais profundo. Por outro lado, o despojamento e o humor de Lama Caroline ao nos transmitir o Dharma são também irresistíveis, porque nos expõem à sabedoria budista por caminhos pouco convencionais e, por isso mesmo, muito inspiradores.

Um mestre em particular que não conheci pessoalmente, mas logo me conquistou, e acabou por se tornar outra referência importantíssima na minha história no budismo, pela forma direta, alternativa e iconoclasta com que apresenta seus ensinamentos, é o Chogyam Trungpa. Ainda hoje seus livros, vídeos e escritos sobre materialismo espiritual, a sabedoria de Shambala, e sua própria história pessoal, são para mim inspirações fundamentais, e me ajudam muito a compreender, por outros ângulos, às vezes bem inusitados, aspectos importantíssimos da prática e da sabedoria do Dharma.

Mais recentemente, no ano de 2016 em Albagnano, tive outro encontro igualmente fundamental e de coração, outro divisor de águas em minha história no budismo. Conheci Kiabje Trijang Choktrul Rinpoche e imediatamente o adotei como mais um mestre essencial, e hoje muito próximo.

Com os mestres, ao longo dos anos venho aprendendo a sair da posição de criança mimada e carente de mestres (que, às vezes, vemos e tratamos erroneamente como pais ou mães), e a me tornar o que chamo de adulto espiritual. Em outras palavras, aprendo a andar com as próprias pernas, mirar constantemente no espelho da própria vida e me acolher em todas as minhas falhas e deficiências, sem disfarçar ou distorcer para mim mesmo minhas negatividades. Busco fazer a minha parte, meditar e cuidar da qualidade de minha meditação, observar-me com muito cuidado em todos os momentos, para ver se minha prática está realmente fazendo alguma diferença no sentido de me tornar uma pessoa melhor, mais madura, pacífica, amorosa, compassiva. Tenho sentido mais profundamente que minha conexão com os mestres vai muito além da nossa proximidade física. Independe de se sou ou não recebido por eles para tratar de meus problemas pessoais. Aliás, venho percebendo mais claramente que nossos verdadeiros problemas não são as pequenas coisas que nos incomodam tanto no samsara, da falta de dinheiro aos relacionamentos. Pois o verdadeiro budismo lida com camadas mais profundas e essenciais: o problema é o samsara em si, e o objetivo é sair dele. Se estamos fazendo nossa parte de coração, no sentido de realmente manter e cuidar de nossa prática individual, em cada momento de nossas vidas, os mestres sempre estarão conosco em absolutamente todos os momentos. Essa conexão mestre-discípulo vai além da própria distância física e geográfica, e até mesmo de se ainda estamos nesta vida ou já desencarnamos, ou eles desencarnaram. Enfim, venho aprendendo que ser budista significa sê-lo 24 horas por dia. Porque não dá pra sair de uma prática de meditação e dizer: ok, já fiz minha prática de hoje, agora vou até ali enganar aquela pessoa, ou brigar com meu vizinho. Nossa vida fora da prática formal deve ser cada vez mais uma extensão da própria prática. A prática espiritual deve abarcar e orientar todas as outras ações e atividades de nossas vidas, das relações afetivas às profissionais. Essa distinção entre vida budista e não-budista vem, aos poucos, perdendo sentido e se desfazendo para mim. Essas percepções e compreensões vêm emergindo em mim como resultados da minha prática diária de meditação, e da convivência com os mestres. Minha experiência diz que, se não desenvolvemos uma certa constância e familiaridade com a prática de meditação, podemos permanecer por muito tempo na superfície dos ensinamentos, num plano mais intelectual e menos essencial, sem acessar e compreender seus sentidos mais profundos, que não são outros que os sentidos mais profundos da própria vida.

Hoje, sigo fazendo a prática de autocura tântrica ngalso todos os dias. Desde que adquiri esse hábito, minha experiência no Dharma realmente começou a mudar, a aprofundar. Às vezes, confesso, não é fácil. Os resultados podem levar tempo para se fazerem notar. Demanda paciência, muito foco, esforço e dedicação. Por vezes, chego em casa meio bêbado ou excessivamente cansado, ou então desanimado, ou até enraivecido, e mesmo assim me forço a sentar e fazer a prática, pois é um compromisso muito forte e profundo que tenho comigo mesmo. Aos poucos, venho incorporando outras práticas e mantras em minha rotina espiritual, mas a autocura ngalso segue no centro de tudo, como minha prática raiz e de referência primordial. Exatamente como é minha relação com o mestre que a compôs: Lama Gangchen Rinpoche.

Que tudo seja auspicioso!

Tashi Delek!

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